Por Daniela Jakubaszko*
A polêmica que se criou em torno do livro Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, adotado pelo MEC, é inútil e representa um retrocesso para a Educação.
Como lingüista e professora de português defendo ardorosamente a utilização do livro. Vou explicar, mas antes faço alguns esclarecimentos:
1. A escola é o lugar por excelência da norma culta, é lá que devemos aprender a utilizá-la, isso ninguém discute, é fato.
2. O livro NÃO está propondo que o aluno escreva “nós pega” – como estão divulgando por aí - ele está apenas constatando a existência da expressão no registro “popular”. Do ponto de vista cotidiano, a expressão é válida porque dá conta de comunicar o que se propõe. E ela é mais que comum e, sejamos sinceros, é a linguagem que o leitor dessa obra usa e entende. Será que é intenção da escola se comunicar com ele de verdade? Se for, ela tem que usar um livro que consiga fazer isso. Uma gramática cheia de exemplos eruditos e termos que o aluno não consegue nem memorizar, com certeza, não vai conseguir.
3. O que o livro está propondo é trocar as noções de “certo” e “errado” por “adequado” e “inadequado”. E isso é mais que certo. Vou explicar a seguir.
4. A questão é: como ensinar a norma culta num país de tradição oral, e no qual existe um abismo entre a língua oral e a língua escrita? Como fazer isso com jovens adultos – que já apresentam um histórico de “fracasso” em seu processo formal de educação e, muito provavelmente, na aquisição dos termos da gramática e seus significados. Se esse jovem não assimilou até o momento em que procurou o EJA (Educação de Jovens e Adultos) a “concordância de número”, como o professor vai fazê-lo usar a crase? Isso para mencionar apenas um dos tópicos mais fáceis da gramática e que a maioria das pessoas, inclusive as “mais cultas e graduadas”, algumas até mesmo com doutorado, ainda não sabem explicar quando ela é necessária.
Por que abolir os conceitos de “certo” e “errado”?
Vou mencionar apenas 3 razões, para não cansar demais o leitor, mas existem muitas outras, quem se interessar pode perguntar que eu passo a bibliografia.
1. Primeiro, por uma questão de honestidade com o aluno. A língua é viva, assim como a cultura, e não pode ser dirigida, por mais que tentem. Por isso, não existe nem “certo” nem “errado”: as regras são convenções e são alteradas de tempos em tempos por um acordo entre países falantes de uma mesma língua. O que era “errado” há alguns anos, hoje pode ser “certo”. Agora é correto escrever lingüística sem trema - o que discordo - e ideia sem acento. Assim, o que existe é o “adequado à norma culta” e o “inadequado à norma culta”. E essa norma é uma convenção, não uma lei natural e imutável. Além disso, por mais que a escola seja representante da norma culta, isto não significa que ela deva ficar “surda” diante dos demais níveis de fala. A língua portuguesa – ou qualquer língua – não pode ser reduzida à sua variante padrão. Tão pouco as aulas de português devem ficar. Afinal, se numa narrativa aparece um personagem, por exemplo, pescador e analfabeto, como o aluno deverá escrever uma fala (verossímil) para ele? Escrever de forma inverossímil é certo? Aliás, o que seria dos poetas e escritores se não fosse o registro popular da língua? Acho que Guimarães Rosa nem existiria.
Com certeza a crítica ao livro parte de setores conservadores e normativos. Eu, como lingüista e professora, não apoio a retirada dos livros porque não acho justo falar para o aluno que o jeito que ele fala é errado, até porque não é, só não está de acordo com a norma culta, o que é muito diferente. Depois que você explica isso para o aluno é que ele entende o que está fazendo naquela aula. Essa troca faz toda a diferença.
2. Segundo, porque quando você diz para um aluno sucessivas vezes que o que ele fez está “errado” você passa por cima da subjetividade dele e acaba com toda a naturalidade dessa pessoa. Daí, ela não fala “certo” e também não sabe quando fala “errado”. Assim, quando na presença de pessoas que ela julga mais letradas que ela própria, não tenha dúvida, vai ficar muda. A formação da identidade do sujeito passa obrigatoriamente pela aquisição da linguagem, viver apontando os erros é desconsiderar a experiência de vida daquela pessoa, é diminuí-la porque ela não teve estudo. E não se engane: ela pode se tornar até uma profissional mais desejada pelo mercado por usar melhor a norma culta, mas não necessariamente vai se tornar uma pessoa melhor.
3. Em terceiro, porque é urgente trocar o ponto de vista normativo pelo científico. A lingüística reconhece que a língua tem seu curso e muda conforme o uso e a cultura: já foi muito errado falar (e escrever) "você", por exemplo. A lingüística também reconhece que a língua é instrumento de poder, por isso, nada mais importante do que desmistificar a gramática normativa. Isto não significa deixá-la de lado, mas precisamos exercitar uma visão mais crítica. Esse aluno sente na pele a discriminação social devido ao seu nível de fala, nada mais natural que ele rejeite a norma culta e considere pedante a pessoa que fala segundo a norma padrão. É compreensível, ainda, que ele não entenda grande parte do que se diz em sala de aula. O que não é compreensível é o professor, ou melhor, “a Escola”, não entender a razão de isso acontecer.
Em nenhum momento foi dito que a professora e autora do livro em questão não iria corrigir ou ensinar a norma culta aos alunos, só ficou validado o registro oral. Os alunos precisam entrar em contato com o distanciamento científico. E os lingüistas não saem por aí corrigindo ninguém, eles observam, e você, leitor, bem sabe como funciona a ciência - e um aluno de pelo menos 15 anos já precisa começar a ouvir falar do pensamento científico. Além disso, é muito bom que eles percebam se o nível de fala que usam tem prestígio ou não, e o porquê.
Por que ignorar o estudo da língua oral em sala de aula? Eu fazia um trabalho nesse sentido com os meus alunos e só depois de transcrever entrevistas orais eles conseguiam ouvir a si mesmos e tomar consciência de seu registro lingüístico: “nossa como eu falo gíria! Eu nem percebia!”. Aí sim eles entendem que, com o amigo, com os pais, eles podem dizer "os peixe", mas que na prova é preciso escrever "os peixes", no seminário é preciso dizer “os peixes”, mas ele precisa estar à vontade para fazer isso. A realidade em sala de aula é que os alunos não entendem onde estão errando. Quando você explica o conceito de norma culta eles entendem. Cria-se um parâmetro e não uma tábua de salvação inatingível. É aceitando o registro desse interlocutor e apresentando mais uma possibilidade de uso da língua para ele que vai surgir o esforço para aprender. Se você insistir no “certo” e no “errado” ele vai ficar com raiva e rejeitar o novo. Quer apostar?
Ter uma boa comunicação não é sinônimo de usar bem as regras da gramática. Para ensinar os conceitos de "gramática natural" e "gramática normativa" temos de dar esses exemplos. Os conservadores se arrepiam porque eles partem do princípio que você nunca pode escrever ou falar nada errado na frente do aluno. Para mim isso é hipocrisia: o aluno tem direito de saber que o registro que ele usa em casa é diferente daquele que ele usa na rua, no estádio de futebol, na escola, no trabalho, em frente ao juiz. E tem o direito de saber que o “correto” se define por aquele que tem mais prestígio social. Essas são só as primeiras noções de sociolingüística, para quem quiser abrir a cabeça e saber. Ou será que a língua portuguesa se aprende descolada da realidade? É isso que se está tentando mudar. É tão difícil assim perceber isso?
Quando me perguntam qual é a função do professor de português na escola, eu respondo: oferecer ao aluno um grau cada vez mais elevado de consciência lingüística; oferecer instrumentos para que ele possa transitar conscientemente entre os diversos níveis de linguagem. Só depois de realizada essa operação o aluno vai conseguir escrever conforme as regras da norma culta. E falar a norma padrão com naturalidade. Ou, ainda, escolher falar conforme o ambiente em que cresceu e formou a sua subjetividade (Lula que o diga, comunica-se muito bem, sem camuflar as suas origens). É bom ficar claro que a função do professor não se reduz a "corrigir" o aluno. Isso, o google, até o word, pode fazer. Ajudar o aluno a ter consciência de seu nível de fala é outra história...
O problema não é uma pessoa dizer “nós pega”, o problema é ela não entender que esse uso não é adequado em determinados contextos, o problema é não saber dizer “nós pegamos”. Ou sequer compreender porque não pode falar “nós pega”... É, leitor, tem muito aluno que não entende porque precisa aprender uma lista de nomes difíceis que nada significam para ele e que ele não enxerga a relação direta entre uso da norma culta e como esta vai ajudá-lo a melhorar de vida.
Conheço quilos, ou toneladas, de gente formada, pós-graduada, que fala “seje” e não tem consciência de que está falando assim, e ainda critica quem fala “menas”. Ouvir a si mesmo é uma das coisas mais difíceis de fazer. E como ajudar o aluno a fazer isso?
O primeiro passo é, sem dúvida, abolir o “certo” e o “errado”. Enquanto o professor for detentor da caneta vermelha, o aluno vai tremer diante dele e nada do que ele disser vai entrar na cabeça dessa pessoa preocupada em acertar uma coisa que não entende, tem vergonha de dizer que não entende, então não pergunta, faz que entendeu, erra na prova e o resultado é ela se achar cada vez mais burra e desistir de estudar. Ufa... Puxa, ninguém estuda mais psicologia da educação? Isso é básico!
E então, leitor, o que é mais honesto com esse aluno que chega no EJA com a autoestima lá em baixo? Começar falando a língua dele e depois trazê-lo para a norma padrão ou começar de cara a humilhá-lo com uma língua que ele não entende?
É muito sério quando pessoas leigas começam a emitir, levianamente, juízos de valor sobre assuntos que não dominam. Alguns jornalistas, blogueiros e “opineiros” de plantão, por exemplo, sem conhecimento dos conceitos e técnicas de ensino em lingüística, sem a menor noção do que está acontecendo nas salas de aula desse país, começam a querer dizer para os professores o que eles têm de fazer, como eles têm de ensinar! Isto sim, é nivelar por baixo! É detonar, mais ainda, a autoridade do professor, já tão desprezada no país. Ah, e ainda fazem isso sem perceber que freqüentemente cometem erros crassos; eu estou cansada de lê-los em blogs, jornais e revistas, e ouvi-los na televisão. Não que precisem, ou usamos com eles os mesmos critérios que defendem?
E então, qual é mesmo o tipo de educação que o Brasil precisa?
* Daniela Jakubaszko é bacharel em lingüística e português pela FFLCH-USP, mestre e doutora pela ECA-USP. Desistiu de ser professora depois de dar aula por 15 anos e virou redatora porque não agüentava mais ouvir: "você trabalha além de dar aulas?"
** Ah, eu tenho uma dúvida: até quando eu posso usar o trema? Até 2012?
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Não concordo com você. Vou refutar cada um dos pontos:
ResponderExcluir1 - ser honesto com o aluno é fazê-lo saber que a forma como ele se comunica (caso erradamente, - ou inadequadamente como você prefere - ele assim se comunique) o distancia do "mundo oficial". as regras mudam, com certeza, mas a realidade é que em uma entrevista de emprego, a forma como ele normalmente se comunica verbalmente irá pesar na escolha dele para um cargo, ou na sua adesão a um grupo de pessoas.
2 - a escola deve se propor a ensinar a comunicação formal. A informal ele aprende em casa. Ele vai entender isto a partir do contato com o mundo educacional, naturalmente, e vai saber separar estes dois momentos. Sua subjetividade não está ameaçada. É preciso que ele possa vivenciar estes dois mundos.
3 - Não cabe à escola modificar a gramática, mesmo compreendendo que a língua muda. A função da linguagem é a comunicação entre as pessoas. É importante ensinar a norma culta para permitir esta comunicação. Existem verdadeiros dialetos no Brasil, resultado da baixa escolaridade do país. É importante que se entenda qual o papel da sala de aula.
Mandou muito bem, Daniela! Estamos reproduzindo sua postagem em nosso tugúrio digital. Lembranças ao Richard!
ResponderExcluirProfessora Daniela,
ResponderExcluirA senhora, com seus comentários, honra a lingua portuguesa, o nosso Brasil e os seres humanos.
Niveo Campos e Souza
Muito obrigada, Niveo. Tenho ouvido tanto absurdo por aí... mas vamos emfrente, né. Um abraço! Daniela
ResponderExcluirSuper Obrigada pelo apoio Seo Cloaca! Fico muito feliz de ver minhas parvas palavras roubadas daqui, viu sô!
ResponderExcluirParabéns pelo texto tão esclarecedor, sensível e tão estimulante para aprender o português brasileiro, com sabor de Brasil.
ResponderExcluirBrigada fessora!
Excelente análise sobre a questão. No meu entender foi a melhor de todas até esse momento. Parabéns!
ResponderExcluirSinto vergonha do nível da nossa imprensa e dos nossos jornalistas, que ao meu ver, não se deram ao trabalho de ler o capítulo do livro que estavam criticando. Só para citar alguns: Merval Pereira, Dora Kramer, Alexandre Garcia, Cláudio Humberto, Ricardo Noblat.
parece que a gente esquece o básico de tanto rodar sobre nossos diferenciais,... o básico é respeito ao saber do outro, que só se constitui em uma relação com duas vias na comunicação, como ensinam lá nos anos iniciais... parabéns por me ensinar/lembrar/revisar/apreender.
ResponderExcluirExcelente texto. É exatamente o que venho tentando explicar pra algumas pessoas, que não entendem que a "norma" culta não define nem esgota a língua portuguesa.
ResponderExcluirBravíssimo, Daniela! Depois de tanto vai e vem, eu que já tinha desistido de ficar falando, escrevendo sobre essa polêmica, não resisti e vim ler o seu belo texto. Que bom. Parabéns!
ResponderExcluirAbração!
Tânia Alexandre Martinelli.
Escritora e também ex-professora de Português.
Excelente texto!
ResponderExcluirExtremamente esclarecedor!
Parabéns pelo seu texto! Vou compartilhar. Mas também vou aproveitar a deixa pra estender a conversa.
ResponderExcluirDo que tenho ouvido, um dos argumentos mais comuns e tidos como irrefutáveis pelos leigos defensores da gramática normativa é o tal "o cara vai ter que usar numa entrevista de emprego, lá é adequado e coisa e tal".
Ora, até o adequado e o inadequado estão geralmente associados ao preconceito, porque não se trata de dizer que é inadequado usar terno e sapato na praia, onde tem sol, areia e água, ou de dizer que é inadequado ir de minissaia e sandália pra Sibéria. Esse não é o problema e, analogamente, podemos, sim, dizer que é inadequado falar holandês pra uma plateia espanhola, ou que é adequado evitar o jargão ao falar com leigos.
O preconceito ocorre quando é inadequado ir de bermuda e chinelo pro trabalho, porque você vai parecer ser mais ignorante e incompetente; ou então quando é inadequado usar saia e decote, porque você vai parecer que quer dar pro chefe (o que multiplica o preconceito); ou mesmo ao dizer que é inadequado ir de terno pro pagode, porque você vai parecer segurança (ainda mais se for negro, o que agrega ainda outros preconceitos).
Mas por que, afinal, é inadequado? Porque "parece que...", ou seja, por preconceito.
A questão não é apenas ensinar e usar as diversas normas. É preciso também acabar com essa ideia preconceituosa de inadequado.
Parabéns Professora Daniela. Excelente texto! O melhor que já li sobre este livro. Até então estava em dúvida mas, a senhora me convenceu definitivamente! Peço-lhe a autorização para publicá-lo no meu blog: http://blogdomauricioporto.blogspot.com/
ResponderExcluirMaurício Porto, professor de desenho.
PS: Fiquei muito feliz ao ver neste blog o selo de Assange, criado por mim e livre para quem quizesse usá-lo.
Claro, Maurício, fique à vontade, será uma honra!
ResponderExcluirE parabéns para você também pelo selo e pela generosidade, obrigada!
Um abração,
Daniela.
Fico feliz em ler esse texto, de uma apropriação linguística perfeita! Como linguísta e professor de Língua Portuguesa defendo o uso do livro pelo conceito de língua que temos. Parabéns Drª Daniela Jakubaszko!
ResponderExcluirTem até mais significado escrever "nós pega" quando pegamos uma coisa que não devíamos pegar e sabendo que estamos errados em pegar, querendo comunicar isso, também.
ResponderExcluirAcho genial essa pegada, apenas usaria entre aspas!
Parabéns, Professora Daniela!
ResponderExcluirÓtimo texto.Põe os pingos nos is.
Fiquei emocionada porque me lembrei do dia em que entrei para a escola, nos anos de 1960, e ouvi a diretora dizer: "doravante, as crianças do campo só poderão falar as palavras certas, reais e comprovadas, ninguém mais deverá falar errado".Passaram-se mais de quarenta anos e ainda lembro da cena. Que se aprenda a norma culta na escola, é esperado,mas não é necessário fazer um falante se sentir o pato feio da língua.
Vou linkar seu texto em meu blog. Obrigada.
Abraços