segunda-feira, 9 de abril de 2012

UMA REFLEXÃO SOBRE A PEC 215/00

Por Andrea Jakubaszko*

Do site da OPAN


“Um dia
a nossa pátria ó mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações…”
Chico buarque de Holanda.

Ai, as emendas do Brasil
O contexto da votação da PEC 215/00 seria cômico se não fosse Trágico. Expressa o ‘jeitinho’ de uma nação, expert em fazer remendos constitucionais para atender a interesses privados.
Constituição - 1988:  momento único autenticamente democrático vivido pela Nação Brasil. Políssêmico. Plural.
O desrespeito extrapola os Povos Indígenas, Quilombolas, porque atinge acima de tudo a história de uma nação e sua capacidade de constituir suas leis, desqualifica os próprios poderes instaurados e representados por políticos que ainda deveriam merecer ser alvo de respeito (os constituintes) juntamente com os interesses públicos e seus não menos importantes representantes civis e a União.
Ainda que o atual e lamentável quorum de deputados que aí  figura – criaturas que não sabem nada de História, nada de Política, nada de Leis, nada do Brasil – politiqueiros que estão longe de ser Politikus - ao imaginarem que sabem o que fizeram, não imaginam: o que estão fazendo.
Responsabilizar a superpopulação mundial e o mercado chinês para justificar submeter toda uma Nação e seus múltiplos e diversos interesses ao retrocesso, configura, nesse caso limite, um Ato Legal de Terror. O Brasil já foi telespectador de muitos, mas tenebroso como esse parece ser sem precedentes. As derrotas somaram-se uma a uma, desde as condicionantes do STF pós demarcação Raposa Serra do Sol (RR), os zonementos ambientais estaduais, grandes obras e negociatas, código florestal e agora - o golpe final.
O que há por trás da PEC 215/00 ?
Fazer justiça aos latifúndios? Fazer justiça ao agronegócio? Fazer justiça à fome do mundo? Fazer justiça ao devido Progresso do Brasil? Havia me esquecido que o Brasil entende de Justiça Social como poucos.
A opnião pública(da) recorrentemente apoia-se em algumas ideias que precisam ser esclarecidas:
1)      Que Terras Indígenas, e a Amazônia de modo geral, configuram terras improdutivas.
2)      A velha ideia de que há muita Terra para pouco índio.
3)      Que Terra de Índio ameaça a soberania do território nacional.
O único e mais sério problema, pouco enunciado, é que os índios não têm nada a ver com tudo isso (até porque estão evidentemente invisíveis nessa malgrada transação) e no final, mais uma vez, devem pagar o pato!
AMAZÔNIA[1]
Terra        Povos       Matas       Água doce      Biodiversidade    Alimentos    Remédios   Saúde
Biopirataria
Ouro      Prata     Diamante
Garimpo
Fauna     Flora     Florestas
Venda ilegal de madeiras / tráfico ilegal de animais
Culturas       Conhecimentos       Técnicas       Saberes      Patrimônios
Tecnopirataria   /    Expoliação
Urânio      Petróleo      Bauxita
Imperialismo
Efetivamente o que está em questão não é o tamanho nem a produtividade de Terras Indígenas que, esclarecemos, correspondem a Terras da União – Tesouro e Patrimônio Nacional - incluindo os sistemas simbólicos (diversidade de culturas) que o alimentam e sustentam.  O que está em questão, portanto, é a capacidade dos cidadãos brasileiros em compreender esse cenário complexo e os diversos interesses em jogo.
Em nosso processo histórico de formação de uma identidade nacional, ainda que desde cedo, na escola, nos habituemos a declarar que a cultura brasileira é também fruto da herança indígena, raramente estamos predispostos a reconhecer e se identificar com essa herança. Apesar da pluralidade de culturas e línguas que configura o Brasil, reconhecido como um país pluriétnico e multicultural, parcelas significativas da população ainda se surpreendem ao descobrir a resistência e existência persistente das culturas indígenas, vivas e presentes no cenário nacional. A surpresa, comumente, vem acompanhada ainda pelo espanto de perceber que muito das práticas culturais tradicionais permanecem atuantes.
O curioso é que esse espanto revela, com freqüência, o sentimento que traduz o estranhamento dessa diferença e dessa persistência pelo sentido do exótico ou do arcaico. Incorporamos com extrema facilidade e leveza novidades tecnológicas, manifestações culturais e comportamentais de vários outros lugares do mundo e, no entanto, consideramos exótica (ou atrasada) a nossa própria tradição, suas raízes, fundamentos e territorialidades. Nos espelhamos cotidianamente nos países chamados de ‘primeiro mundo’, porém, esquecemos que o reconhecimento da tradição e o respeito ao seu patrimônio cultural, natural e histórico, articula um eixo vital de seus padrões de desenvolvimento.
Por essa razão, compreender o que significam estas Terras da União é extremamente importante para o nosso próprio reconhecimento, o reconhecimento de um nós tão caro à concretização de um sentimento de nação. Incorporar referenciais dados por estas nações nativas e seus saberes significa valorizar e legitimar nossas possibilidades históricas tanto no que se refere ao passado quanto no que diz respeito ao presente e ao futuro. Mais do que museus e arquivos, o Brasil ainda precisa caminhar muito na direção de conhecer e respeitar as tantas expressões, vivas e atuantes, que configuram a realidade do país e as potencialidades diversas de desenvolvimento que essas expressões sustentam. 
O caminho mais imediato para a internacionalização e a ameaça de soberania nacional é converter as Terras da União em propriedades privadas para cultivo de commodities e produção exógena tipo exportação. Nesse caso, interesses antinacionais sem dúvida serão vitoriosos. Esta é a Justiça Social defendida pela Câmara dos Deputados na defesa da PEC 215/00.
O nosso legislativo, em sua insana transgressão pode, desta vez, fazer eclodir aquilo que no Brasil sempre se manifestou de modo local e controlável pelo Estado – rebeliões civis. Caso esta PEC venha a ser futuramente aprovada pelo congresso nacional, com assombro, talvez vejamos enfim O Terror de uma Nação.
                                       “numa enchente amazônica,                                                                                                                    numa explosão atlântica,                                                                                                                  a multidão vendo em pânico,                                                                                                                         a multidão vendo atônita,   ainda que tarde,                                                                     o seu despertar”
Chico Buarque de Holanda
 Andrea Jakubaszko é antropóloga, Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e Membro do Conselho Diretor da OPAN - Operação Amazônia Nativa.