Por Emiliano José
Do site da Carta Capital - publicado em 27 de janeiro de 2011 às 11:40h
A pretensão de sepultar o assunto da tortura, do assassinato e do desaparecimento de pessoas durante a ditadura é vã. É sempre o velho gesto de jogar a sujeira para debaixo do tapete, tentar ignorar os fatos da história. Eles voltam, os fatos, por mais que se faça a tentativa de ignorá-los. Até porque, não houvesse outros aspectos mais amplos, há a dor, a viuvez de tanta gente, a mãe que ainda chora, o filho ou a filha que não viu o pai, as tantas pessoas que não puderam sequer enterrar os seus entes queridos, enterrados ninguém sabe onde, assassinados sempre de maneira cruel, sempre sob a covardia da tortura.
Novamente, e mais uma vez, logo que a nova ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, defendeu a aprovação pelo Congresso Nacional da Comissão da Verdade para esclarecer os crimes cometidos contra adversários políticos durante a ditadura, vozes dentro do próprio governo federal se levantaram para contraditá-la. Isso já havia ocorrido, e faz pouco tempo, quando o então ministro Paulo Vannuchi defendera posição semelhante, inclusive a imprescritibilidade do crime da tortura. Creio que é preciso situar corretamente a questão para não incorrermos em equívocos históricos e conceituais. E reafirmar que o crime de tortura é imprescritível e que nenhuma nação pode deixar de apurar os crimes cometidos durante uma ditadura. Tal procedimento é da tradição democrática.
O general José Élito Siqueira saiu-se com o argumento de que sendo o 31 de março um dado histórico, “os desaparecidos são história da nação, de que nós não temos que nos envergonhar ou vangloriar”. O raciocínio é pobre e equivocado. E carrega a crueldade dos defensores da ditadura. Imaginemos que alguém, depois da derrota de Hitler, viesse a público para dizer que o nazismo era simplesmente um fato histórico e que os fornos de Auschwitz não deveriam representar qualquer vergonha e nem deveriam ser motivo de vanglória.
A ditadura é um dado histórico que envergonha profundamente a nação brasileira. Diante dela, ninguém que professe a democracia e que seja fiel à história pode ficar indiferente e deixar de repudiá-la até para que nunca mais se repita. E os seus crimes devem e têm que ser apurados, como têm feito nossos irmãos latino-americanos, como o fizeram os democratas e comunistas que venceram a batalha contra o nazismo.
O ministro Nelson Jobim, que sempre teve lado nesse caso, disse que a Comissão da Verdade deveria também avaliar as ações desenvolvidas pelos “movimentos guerrilheiros”, como ele chamou. Decerto está querendo que os milhares de torturados, presos, e condenados sejam submetidos, quem sabe a novos julgamentos e a novas punições. O que as diversas organizações políticas de luta contra a ditadura faziam, não custa lembrar isso a um Jobim que um dia se disse constitucionalista, era exercer o direito de insurgência e resistência que é próprio do liberalismo moderno. Do liberalismo, insistamos. Talvez fosse o caso de lembrar a luta armada que determinou o surgimento dos EUA, para não darmos dezenas de outros exemplos. A ditadura rompeu com o Estado de Direito pela violência, de modo ilegal, e era um direito básico o da insurgência.
No raciocínio do general e de Jobim, caberia rever a história mundial recente, e julgar todos os que se envolveram no impressionante movimento anticolonial, que determinou a libertação de tantos países mundo afora, particularmente no território africano. O que se cobra, o que se tem feito em toda a América Latina é o julgamento dos que cometeram genocídios, dos que mataram covardemente pessoas na tortura, que fizeram desaparecer pessoas, e o exemplo mais recente é o de Rafael Videla, condenado à prisão perpétua na Argentina. A anistia, como determinou recentemente a OEA em relação ao Brasil, não alcança torturadores, contrariamente à opinião do STF.
Uma nação não pode sufocar a verdade. E nem pretender deixar de ajuizar todos os fatos históricos. Alguém poderia justificar a escravidão, a ignomínia da escravidão no Brasil? Não. Como não pode deixar de repudiar, de levantar todos os crimes cometidos pelos agentes da ditadura que torturaram e mataram pessoas. Só isso. Paulo Sérgio Pinheiro escreveu artigo recente no jornal Folha de S. Paulo (17.1.2011., p. 3) onde apropriadamente diz que o passado nunca está morto.
Mais: quanto a este assunto, nem passado é ainda. Ainda recuperando o que diz o ex-secretário de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso, cabe lembrar que o pai do general-presidente da ditadura, João Batista de Figueiredo, então deputado Euclydes Figueiredo, em 1946, requereu a criação de uma comissão de inquérito que examinasse os crimes do Estado Novo. A comissão, a primeira comissão da verdade, foi criada, mas não funcionou por falta de quorum – ou seja, não havia vontade política suficiente para fazê-la funcionar.
A Comissão da Verdade proposta pelo então presidente Lula, acolhendo sugestão do ministro Paulo Vannuchi, visa o esclarecimento histórico dos horrores praticados pela ditadura, situando tudo no contexto ampliado daquela circunstância histórica de triste memória. Não tem caráter de revanche. Não tem qualquer mandato judicial. Não há, ali, réus sendo julgados. Só pretende a verdade, não mais do que a verdade. A nós, e parafraseio Gramsci, só interessa única e exclusivamente a verdade. Esta Comissão, como também revela Paulo Sérgio Pinheiro, acolhe o melhor das 40 comissões da verdade no mundo, a indicar o quão ampla é, e o quanto tem sido normal o procedimento. Argentina, Chile, Bolívia, Peru, por exemplo, viveram essa experiência.
A pergunta que não quer calar é: quem tem medo da verdade?
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